Já no período da fundação do município, na primeira metade do século XIX, o campo das relações políticas era organizado sob "a dicotomia ‘situação’ e ‘oposição’, norma fundamental e expressão política da sociedade brasileira desde o período colonial" (Queiroz 1977:170): no caso, pela disputa entre liberais e conservadores. Essa norma se tornou um padrão no campo das relações políticas em São João Nepomuceno, permanecendo operante até os dias de hoje, e caracterizando também o período eleitoral como uma arena em que o conflito é exercido ritualmente através de uma hostilidade autorizada entre facções (cf. Caniello 1993:181-277). Assim, tal como o clubismo, o partidarismo informa estruturalmente a mesma coisa: um embate circunscrito, mas vigoroso, entre grupos oriundos do contexto social totalizador da pequena cidade, organizados com base em uma identidade opositiva em momentos rituais que refratam o tempo cotidiano.
É exatamente a história da relação entre esses dois campos da vida social são-joanense que pode nos indicar de que forma o padrão pessoalizante reage diante do "processo de individualização" promovido pela expansão do capitalismo, cuja pressão também é sentida nas pequenas cidades, crescentemente integradas na sociedade inclusiva. O que nos autoriza a supor que havia uma espécie de tensão entre o tradicional e o moderno na ideologia local é a formulação de um discurso dúbio sobre a rivalidade, através da construção de uma representação do fluxo histórico no qual "presente" e "passado recente" se contrastam como realidades em que a rivalidade pouco influi na vida social como um todo com um "passado remoto" quando ela verdadeiramente codificava o panorama social da pequena cidade.
O passado é visto como "a época da política braba", quando a divisão política redundava em um faccionalismo que alinhava clubes, associações, bandas de música, jornais e até farmacêuticos e médicos em duas metades opostas e beligerantes que classificavam indivíduos e instituições, incluindo-os em uma ordem de oposição totalizadora que condicionava seu trânsito nas relações sociais mais gerais. Como demonstra a historiografia política da República Velha, essa era a configuração societária dominante nas pequenas cidades brasileiras de então (cf. Leal 1986 e Queiroz 1977). É o que denominamos faccionalismo clássico: a vida social é organizada a partir de uma clivagem da totalidade globalizadora da pequena cidade — a qual é codificada pelos grupos políticos que disputam o poder, normalmente sob a fórmula situação vs. oposição —, o que produz arenas de solidariedade e identidade (a própria facção) e arenas de hostilidade e rivalidade (as relações com a facção oposta). Um fator importante nessa configuração é que as facções políticas não são definidas a partir de posições programáticas diferenciais, mas por alinhamentos pessoais expressos modelarmente em relações de patronagem e no clientelismo (cf. Caniello 1990a).
Na São João Nepomuceno da primeira metade do século XX, isso ocorre com a disputa pelo domínio da "máquina" (Scott 1969) do Partido Republicano Mineiro (PRM), em um momento em que a descentralização federativa articulada a uma estrutura eleitoral viciada garante aos partidos republicanos estaduais uma hegemonia incontestável, conferindo aos "chefes políticos" locais grande poder de influência como mediadores entre a população da pequena cidade e o governo estadual. Assim, durante a República Velha, o jogo político é marcado por uma forte animosidade entre situação e oposição, cujo clímax se verifica durante o período eleitoral, mas que define os padrões de sociabilidade mais gerais ao "dividir" a cidade no seu próprio cotidiano. Contudo, ao contrário do que afirma Queiroz (1977:170), em São João Nepomuceno, o "ajuste violento" não era a "forma normal" de veiculação da dissensão. Longe disso, o que ocorria na cidade era um sistemático controle da violência pela ritualização das disputas, através de um enfrentamento aberto e violento apenas no plano da oratória, tanto nos espaços de relação interpessoal do cotidiano quanto nos comícios e no proselitismo dos jornalistas.
Essa dinâmica da disputa política vai se agudizando na medida em que a oposição se organiza mais organicamente no município, a partir da segunda metade dos anos 20. O processo político torna-se cada vez mais conflituoso, e o aparelhamento das pessoas e instituições envolvidas mais radical, como pudemos verificar em relação à própria rivalidade clubística. O ano de 1926 pode ser considerado uma espécie de clímax dessa situação, tendo em vista uma conjunção de acontecimentos que exacerbariam ainda mais a tendência de radicalização da rivalidade faccional. O primeiro desses fatos é o falecimento do coronel José Braz de Mendonça, fundador da oligarquia detentora da sigla do PRM municipal e dona de uma hegemonia situacionista antiga e persistente, e a ascensão de seu filho Dr. Péricles de Mendonça à posição de "chefe" do PRM local. Entretanto, a sucessão não foi consensual e a disputa pela liderança do partido majoritário ocasionou o segundo fato: o aparecimento dos dissidentes7 que "racham" com os periclistas, partidários da oligarquia dominante. Esse estado de coisas se encaminharia para a configuração de um terceiro fato fundamental: a consolidação do Partido Dissidente, fundado pelo coronel José Henriques Pereira Brandão, político de família tradicional da cidade, contemporâneo e antigo aliado do coronel José Braz, que passou a atrair membros da elite local descontentes com a sucessão. A fundação do jornal A Cruzada foi outro fator decisivo, pois a folha passou a polemizar virulentamente com a Voz do Povo, jornal situacionista, reforçando a rivalidade faccional.
A tendência de exacerbação atingiu o seu ápice no dia 7 de setembro de 1926, quando ocorreu o único episódio sangrento na história política da cidade. Uma polêmica banal, a troca do nome da praça principal proposta pelos dissidentes e obstruída na Câmara Municipal pela maioria periclista, levou as duas facções — cujos líderes se haviam ausentado para a posse do presidente do Estado — a transformarem a referida praça em um verdadeiro "campo de batalha". Os dissidentes, inconformados com a manobra periclista, saíram em comissão até a praça e, acompanhados de sua banda de música e sob o espocar de foguetes, tentaram afixar a placa com o novo nome. Os periclistas reagiram prontamente e, em meio à discussão, houve uma troca de tiros que deixou quatro pessoas mortas, inclusive o diretor da Voz do Povo.
Este episódio marcaria profundamente o quadro das relações políticas em São João Nepomuceno e redefiniria, como veremos, a própria estrutura do faccionalismo na cidade. A avaliação dos "acontecimentos de 1926" operou como uma espécie de advertência em relação ao potencial de violência do divisionismo político exacerbado, contraditório ao ideário "unionista" do padrão pessoalizante tipicamente brasileiro8, equilibrado pela ritualização dos conflitos na pequena cidade. A matéria publicada pela Voz do Povo, ao completarem dois meses do evento, é modelar:
"Azas pandas, enfunadas pela nortada rija do infortunio, a alegria completa emigrou de nosso meio: no ar, volteando, como farrapos negros, os corvos voejam, farejando a reputação alheia e nella fincando suas garras aduncas, emquanto a Discordia — essa megera terrível — faz o seu trabalho deliquescente invadindo os lares, separando os paes dos filhos, partindo affectos, desligando amigos de infância e de muitos annos, fazendo esquecida a gratidão, reflectindo-se nas relações de familia, para a construção de uma Babel nova e ainda mais perniciosa que a da lenda cristã. [...] O sangue humano não alicerça partidos. O seu derramamento injustificado quebrou a harmonia e a paz reinantes na honrada familia sanjoanense, produzindo o desagregamento de energias poderosas até então vinculadas aos sãos preceitos do Perdão, do Amor e da Caridade" (Voz do Povo, nº 927, 7/11/1926).
O que ocorre depois, além do já apontado refluxo da rivalidade clubística, é uma reacomodação das relações políticas, com o crescimento dos dissidentes na eleição municipal de 1927, principalmente entre o eleitorado urbano. Contudo, a perspicácia política do Dr. Péricles fez com que sua facção se alinhasse à Aliança Liberal, permitindo a manutenção de seu poder de mando mesmo com a Revolução de 30, em virtude da qual foi nomeado interventor municipal.
No entanto, os anos 30 testemunharam um momento de transformações importantes no panorama social do país, que se relacionavam perfeitamente com as tendências modernizadoras defendidas pela Revolução: a inserção mais efetiva da sociedade brasileira no âmbito do capitalismo internacional (cf. Abreu 1984:13) e, conseqüentemente, a definição de um padrão de relações sociais, políticas e econômicas cada vez mais pautado pela lógica do mercado, seja em sua dimensão propriamente econômica, com o impulso do processo de industrialização (cf. Abreu 1984:30), seja na base ideológica que o informa, com a reivindicação de um modelo político fundado no liberalismo e em instituições democráticas (cf. Fausto 1990:236, passim). Nos nossos termos, a emergência de um padrão ético individualista como modelo dominante9.
Isso teria provocado o que Edgar Carone (1978:6) chama de "caráter de transitoriedade" e Boris Fausto (1990:237) de "período de acomodação". Na sua primeira fase — entre 1930 e 1937 —, a República Nova articulava tendências modernizadoras com formas tradicionais de poder político — nas pequenas cidades, principalmente, as velhas oligarquias mantinham-se operantes, já que conseguiam capitalizar para si elementos do ideário liberal, principalmente processos eleitorais livres e legais, submetendo-os à preservação de estratégias tradicionais de cooptação de eleitores (cf. Camargo 1983:127). Pode-se dizer que, naquele momento, a sociedade brasileira reagia ambiguamente, formulando um modelo ético dúplice que articulava o tradicional ao moderno.
Em São João Nepomuceno, um indício importante aponta para o mesmo processo dúplice: a redefinição da estrutura faccional. Por um lado, como já vimos, opera-se a restauração da rivalidade clubística e, por outro, o padrão de disputas eleitorais entre situação e oposição continua operante, mas percebe-se uma certa acomodação com a articulação de um novo quadro de composições políticas entre as antigas facções pela necessidade de aliar o poder de voto da velha oligarquia ao discurso modernizador crescentemente hegemônico. Como resultado, inicia-se um processo de "flexibilização" do faccionalismo realizado, fundamentalmente, pela desinstrumentalização da rivalidade política, que passa a perder seu poder codificador na construção dos alinhamentos faccionais (cf. Caniello 1993:224-227).
O golpe de 1937 e o regime de exceção impõem a "suspensão" das atividades políticas na cidade, e a Segunda Guerra Mundial o arrefecimento da rivalidade clubística. Contudo, a partir da restauração democrática e do fim da guerra, a tendência de flexibilização do faccionalismo retoma seu curso.
Em primeiro lugar, reeditam-se as disputas eleitorais entre facções políticas organizadas com base nos grupos tradicionais — periclistas e dissidentes —, mas a nova ordem eleitoral determina um inusitado equilíbrio entre a antiga oligarquia alijada do poder no Estado Novo e o grupo situacionista emergente, configurando-se uma recomposição no quadro político com a aliança das antigas facções rivais, que passam a gozar de uma tranqüila hegemonia política consensual. Assim, é num fluxo de permanência na mudança que a política municipal transcorre até o final da década de 50. Se há, claramente, uma evolução em termos dos princípios institucionais na escolha eleitoral e na organização partidária, um desaparelhamento faccional e um comportamento político mais equilibrado, há, por outro lado, a manutenção dos mesmos grupos dirigentes "oligárquicos", uma estrutura de poder calcada em uma hegemonia indiscutível da situação e a sobrevivência de um estilo político calcado na "lógica da patronagem" (cf. Caniello 1990a:50-51; 1993: 239-247).
Em segundo lugar, vimos que esse foi o período do "apogeu" da rivalidade clubística na cidade, tanto pela consolidação dos clubes carnavalescos, e por seu investimento no carnaval, quanto pelo aparecimento dos clubes de futebol, que criaram um novo "campo" para o exercício da rivalidade. Contudo, conformava-se um novo tipo de faccionalismo que se definia por dois aspectos principais: a rivalidade era exercida em três arenas diferentes — na política, no carnaval e no futebol —, e a estrutura política perdia definitivamente o poder de valer-se das instituições clubísticas — ou de outras quaisquer — para uma instrumentalização direta das dissensões partidárias. Configurava-se, a partir de então, o que conceituo como faccionalismo em série (cf. Caniello 1990a:52-53; 1993:299, passim): uma ordem social que pulveriza a rivalidade característica dos sistemas totalizadores da pessoa por diversos campos da vida social sem, entretanto, estabelecer alinhamentos inclusivos que indiquem a formação de dois grandes blocos antagônicos e excludentes, classificatoriamente falando10. No caso de São João Nepomuceno, esse modelo faccional se caracteriza pela ausência de identificação direta entre o pertencimento do indivíduo às facções políticas e sua adesão às associações esportivas e carnavalescas.
Esse tipo de arranjo é essencialmente dúplice, na medida em que mantém a rivalidade como uma prática importante para a veiculação do conflito por intermédio de oposições grupais virulentas, mas a circunscreve a ambientes e momentos rituais específicos, impossibilitando o aparelhamento dualista do grupo social. O que ocorre é, ao mesmo tempo, uma agudização da rivalidade e uma acomodação de "elementos novos". Se, por um lado, as associações são definidas contrastivamente em função de uma rivalidade opositiva de matriz tradicional, a adesão a elas torna-se cada vez mais "livre", passando a depender mais da escolha do indivíduo e menos de imposições classificatórias inclusivas. Isso "apaziguou" as relações, mas manteve o código da rivalidade:
"Tinha o Trombeteiros e o Democráticos, clubes de carnaval; então, entre esses dois clubes era uma disputa ferrenha. Mas, em compensação, tinha os clubes de futebol [...] que era também uma disputa ferrenha e braba, quente mesmo, mais pra briga do que pra outra coisa. Depois, tinha a disputa política. [...] O pessoal trocava, entendeu? É por isso que eu tenho a impressão que o problema do desforro pessoal acabou. [...] A coisa amainou um pouco, a coisa não ficou tão ferrenha porque o sujeito não tava podendo ofender o outro; porque lá na reunião, lá na política, o cara fazia parte [do grupo] dele. Eu não podia brigar porque na outra associação eu ia ter que conviver com ele. Quer dizer, o pessoal era o mesmo que participava de todas as três [...], como é que eu vou fazer para ofender um cara que é do outro partido lá, como é que eu vou fazer para ofender esse cara que é do PSD se ele é meu amigo lá no Trombeteiros?" (José Maria Fam, 60 anos, empresário, ex-candidato a prefeito em duas eleições na década de 70)
O advento da década de 60, no entanto, traz importantes modificações no panorama social das "cidades pequenas" com a consolidação da "modernização" da sociedade brasileira, pois a "política de nacionalismo desenvolvimentista" (Skidmore 1982:205) de Juscelino Kubitschek, definitivamente, inseriria o país no âmbito do capitalismo mundial (cf. Singer 1984:225). Além disso, uma incontestável evolução da sociedade brasileira em termos demográficos, sociais e econômicos acabaria por criar condições bastante propícias ao desenvolvimento de um mercado interno amplo e vigoroso (cf. Sodré 1963:361-362). Essa conjunção de fatores, articulada à expansão da malha rodoviária, a um processo de urbanização crescente e a um grande incremento dos meios de comunicação de massa, consolidaria a disseminação definitiva da lógica de mercado em todo o território nacional, e esse movimento viria a impactar o modo de vida tradicional das "cidades pequenas".
Em São João Nepomuceno, esse processo se desencadearia, principalmente, pelo estabelecimento de relações mais eficientes entre a pequena cidade e a sociedade inclusiva, relações estas fomentadas por uma significativa melhora de suas estradas e das telecomunicações, particularmente com a inauguração de uma repetidora de sinais de televisão em 1962. Essas novas condições estimulariam a formulação de um discurso modernizador dominante na época, o qual veicularia uma categoria central da cosmologia histórica do faccionalismo: "o fim da rivalidade". De fato, a diversificação da vida social na cidade e o crescente desequilíbrio entre o Democráticos e o Trombeteiros, aquele em franca decadência e este em plena ascensão, viriam a mitigar a tradicional rivalidade entre os clubes. No início dos anos 80, a fundação do "country clube" do Trombeteiros, a moderna sede campestre do "clube social" que já fora "clube carnavalesco", parece ter completado esse processo, pois sua excelente estrutura passou a atrair não só as "famílias trombeteiras", mas também as "famílias democráticas", que já não podiam contar com o "clube do coração" para seus momentos de lazer. Embora aqueles chamados e autodenominados "renitentes" de ambos os clubes ainda resistissem, as novas gerações consideravam a rivalidade clubística apenas como um traço de uma velha tradição decaída nos novos tempos.
Porém, se somos instados a estabelecer uma relação de causalidade entre as mudanças na economia nacional, a hegemonização da lógica de mercado com sua pressão modificadora e a transformação de padrões de sociabilidade tradicionais colocados pelo "discurso nativo", dois fatores importantes contraditam essa correspondência: o quadro das relações políticas e a própria estrutura da rivalidade carnavalesca.
Em primeiro lugar, consideremos o campo das disputas políticas e sua dinâmica no início dos anos 60. Na década anterior, as antigas facções aliaram-se em virtude de um inusitado equilíbrio de forças entre os periclistas, reunidos no então inexpressivo Partido Republicano, e os dissidentes, detentores da administração local durante o Estado Novo, então filiados ao Partido Social Democrata (PSD), partido majoritário no estado. Entretanto, em 1960, Magalhães Pinto, da União Democrática Nacional (UDN), elege-se governador de Minas Gerais, o que faz com que o Dr. Péricles e seu PR encontrem uma linha de coligação eficiente que lhes dá uma base segura de sustentação eleitoral, garantida pelo alinhamento com a administração estadual e sua "máquina política". Assim, o velho chefe rompe a aliança conjuntural com seus adversários históricos, a disputa política retoma a tradicional polarização e o grupo do Dr. Péricles reassume o mando do poder local nas eleições municipais de 1962, posição que se estabiliza a partir do golpe de 1º de abril de 1964, já que Magalhães Pinto fora um dos seus principais articuladores.
Essa configuração se consolidou ainda mais a partir da nova legislação eleitoral imposta pelos militares após a derrota das forças situacionistas em Minas e na Guanabara nas eleições de 1965. Com a dissolução dos antigos partidos e a imposição do bipartidarismo, a relação situação vs. oposição passa a ser a única alternativa possível no jogo eleitoral. Sem embargo, o estado de exceção e seu recrudescimento praticamente impedem o exercício do oposicionismo, considerado "subversivo" na visão de um regime que se torna crescentemente discricionário. Por outro lado, a morte do Dr. Péricles, em 1966, "esvazia" a tradicional rivalidade política ao destituí-la de sua peça mais importante. Por isso, em mais um lance de pragmatismo político, as antigas facções voltam a se aliar, agrupando-se agora sob a sigla do partido oficial, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA). Durante a década de 70, exercem uma hegemonia incontestável no município, vencendo eleições definidas pela influência das forças majoritárias estaduais indicadas pela cúpula federal do regime militar. Entretanto, uma regra das eleições municipais nesse período era o lançamento à "cabeça de chapa" dos vice-prefeitos em fim de mandato, o que demonstra que o campo político ainda guardava a marca das antigas facções, conjunturalmente unidas sob a mesma sigla partidária mas organicamente separadas pela alternância no exercício do mando político:
"Bolote [prefeito (1970-1973)] tinha o compromisso com o Zé Salu, na outra eleição trabalharia para ele ser prefeito; então na outra eleição o Zé Salu foi prefeito [1973-1976] e o Antonio Cavalheiro, vice. Aí, chegaram as eleições, então o Cavalheiro entrou pra prefeito [1977-1982] e o Vagner, vice. Daí a seis anos, o Vagner elegeu-se prefeito [1982-1988]". Célio, 46 anos, empresário, prefeito da cidade.
Com a "distensão" e a volta da normalidade democrática, o jogo político na cidade vai voltando à sua habitual polarização, uma vez que os novos grandes partidos, o Partido Democrático Social (PDS) e, depois, o Partido da Frente Liberal (PFL), por um lado, e o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), por outro, passam a acomodar as forças políticas locais e as eleições readquirem o caráter de disputa tradicional. Nas eleições de 1988, dá-se a "grande virada" no município: seguindo a tendência de crescimento estadual do PMDB, que elege o governador, enfim um candidato oposicionista vence em São João Nepomuceno. Apesar da derrota do situacionismo, a vitória peemedebista na cidade parece justamente confirmar uma regra de comportamento político que tem nos "mediadores" seu elemento principal:
"Célio Filgueiras Ferraz será o primeiro prefeito eleito do PMDB no município, após 20 anos de governo dos antigos partidos, ARENA, PDS e do atual PFL. Para a cidade será uma mudança radical necessária, pois doravante a administração municipal estará afinada com o atual governador Newton Cardoso e o deputado Elmo Braz Soares que, antes, pouco podiam fazer por nossa comunidade. Cremos ter sido este o grande motivo que levou os eleitores a apoiar o candidato do PMDB" (Voz de São João, nº 2.667, 18/11/1989).
Portanto, mesmo diante das radicais mudanças políticas e econômicas verificadas entre 1960 e 1990 na sociedade brasileira, o jogo político em São João Nepomuceno manteve a sua estrutura tradicional fundamentada no padrão pessoalizante: a rivalidade entre facções políticas antagônicas, a hegemonia do situacionismo vinculado ao poder estadual e o comportamento político baseado na lógica da patronagem, apesar de suas acomodações conjunturais. Entretanto, o que se verifica é que o vigor da rivalidade faccional no campo político aprofunda sua característica ritual, pois ela vai gradativamente perdendo o poder totalizador e circunscrevendo-se ao "tempo da política":
"A política em São João é sempre uma política muito calma e só se fala em política em ano de eleição [...]. Todos vivem harmonicamente, na época de eleição é que a gente separa. [...] Quando chega a política, então há o afastamento; acabou a política, se une tudo." (Heleno, 68 anos, advogado, vice-prefeito)
No caso da rivalidade carnavalesca, como vimos, evidencia-se um processo homólogo. Com o declínio dos clubes e a ascensão das escolas de samba, reedita-se uma realidade estruturalmente idêntica à dos antigos "festejos de momo" e seu principal elemento, a disputa. Contudo, tal como na política, o exercício ritual da rivalidade é agudizado, ao restringir-se, cada vez mais, ao "tempo do carnaval":
"[A rivalidade] é diferente, porque a escola de samba acontece uma vez por ano. As pessoas em São João não vivem em função das escolas de samba o ano todo, é quando tá chegando o carnaval. No clube, as críticas, as coisas, apesar de só serem feitas no carnaval, a rivalidade existia o ano inteiro. [...] Escola de samba tem só no carnaval, mas é muito acirrado" (Plínio, 32 anos, industriário, presidente do Trombeteiros).
Portanto, no início dos anos 90, configura-se a última fase do processo de desinstrumentalização da rivalidade tradicional, que conceituei como faccionalismo pontual (cf. Caniello 1993:319, passim): a rivalidade perde definitivamente aquele poder classificatório que condiciona o trânsito do indivíduo nas diversas áreas da vida social, tornando-se ainda mais circunscrita a momentos especiais e demarcados que veiculam enfrentamentos grupais conflituosos. Por outro lado, ela permanece sendo uma categoria definidora da "reciprocidade hostil", que contrabalança ritualmente o "unionismo" globalizador da vida cotidiana e sua lógica mais profunda, a ética pessoalizante. Assim, no faccionalismo pontual preserva-se a estrutura definidora da rivalidade, exacerbando seu caráter ritual, mas o indivíduo é libertado da classificação totalizadora proveniente do pertencimento à facção, cobrindo-se de uma ideologia que pontua a escolha individual como elemento crítico de suas opções partidárias ou carnavalescas.
Márcio Caniello é professor do Departamento de Sociologia e Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), onde trabalha desde 1986. Mestre em Antropologia Social pelo PPGAS/MN/UFRJ (1993) e doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (2001), atualmente é coordenador do PPGS/UFCG e membro da diretoria da ANPOCS e o presente trabalho corresponde à tese de mestrado do professor.
É exatamente a história da relação entre esses dois campos da vida social são-joanense que pode nos indicar de que forma o padrão pessoalizante reage diante do "processo de individualização" promovido pela expansão do capitalismo, cuja pressão também é sentida nas pequenas cidades, crescentemente integradas na sociedade inclusiva. O que nos autoriza a supor que havia uma espécie de tensão entre o tradicional e o moderno na ideologia local é a formulação de um discurso dúbio sobre a rivalidade, através da construção de uma representação do fluxo histórico no qual "presente" e "passado recente" se contrastam como realidades em que a rivalidade pouco influi na vida social como um todo com um "passado remoto" quando ela verdadeiramente codificava o panorama social da pequena cidade.
O passado é visto como "a época da política braba", quando a divisão política redundava em um faccionalismo que alinhava clubes, associações, bandas de música, jornais e até farmacêuticos e médicos em duas metades opostas e beligerantes que classificavam indivíduos e instituições, incluindo-os em uma ordem de oposição totalizadora que condicionava seu trânsito nas relações sociais mais gerais. Como demonstra a historiografia política da República Velha, essa era a configuração societária dominante nas pequenas cidades brasileiras de então (cf. Leal 1986 e Queiroz 1977). É o que denominamos faccionalismo clássico: a vida social é organizada a partir de uma clivagem da totalidade globalizadora da pequena cidade — a qual é codificada pelos grupos políticos que disputam o poder, normalmente sob a fórmula situação vs. oposição —, o que produz arenas de solidariedade e identidade (a própria facção) e arenas de hostilidade e rivalidade (as relações com a facção oposta). Um fator importante nessa configuração é que as facções políticas não são definidas a partir de posições programáticas diferenciais, mas por alinhamentos pessoais expressos modelarmente em relações de patronagem e no clientelismo (cf. Caniello 1990a).
Na São João Nepomuceno da primeira metade do século XX, isso ocorre com a disputa pelo domínio da "máquina" (Scott 1969) do Partido Republicano Mineiro (PRM), em um momento em que a descentralização federativa articulada a uma estrutura eleitoral viciada garante aos partidos republicanos estaduais uma hegemonia incontestável, conferindo aos "chefes políticos" locais grande poder de influência como mediadores entre a população da pequena cidade e o governo estadual. Assim, durante a República Velha, o jogo político é marcado por uma forte animosidade entre situação e oposição, cujo clímax se verifica durante o período eleitoral, mas que define os padrões de sociabilidade mais gerais ao "dividir" a cidade no seu próprio cotidiano. Contudo, ao contrário do que afirma Queiroz (1977:170), em São João Nepomuceno, o "ajuste violento" não era a "forma normal" de veiculação da dissensão. Longe disso, o que ocorria na cidade era um sistemático controle da violência pela ritualização das disputas, através de um enfrentamento aberto e violento apenas no plano da oratória, tanto nos espaços de relação interpessoal do cotidiano quanto nos comícios e no proselitismo dos jornalistas.
Essa dinâmica da disputa política vai se agudizando na medida em que a oposição se organiza mais organicamente no município, a partir da segunda metade dos anos 20. O processo político torna-se cada vez mais conflituoso, e o aparelhamento das pessoas e instituições envolvidas mais radical, como pudemos verificar em relação à própria rivalidade clubística. O ano de 1926 pode ser considerado uma espécie de clímax dessa situação, tendo em vista uma conjunção de acontecimentos que exacerbariam ainda mais a tendência de radicalização da rivalidade faccional. O primeiro desses fatos é o falecimento do coronel José Braz de Mendonça, fundador da oligarquia detentora da sigla do PRM municipal e dona de uma hegemonia situacionista antiga e persistente, e a ascensão de seu filho Dr. Péricles de Mendonça à posição de "chefe" do PRM local. Entretanto, a sucessão não foi consensual e a disputa pela liderança do partido majoritário ocasionou o segundo fato: o aparecimento dos dissidentes7 que "racham" com os periclistas, partidários da oligarquia dominante. Esse estado de coisas se encaminharia para a configuração de um terceiro fato fundamental: a consolidação do Partido Dissidente, fundado pelo coronel José Henriques Pereira Brandão, político de família tradicional da cidade, contemporâneo e antigo aliado do coronel José Braz, que passou a atrair membros da elite local descontentes com a sucessão. A fundação do jornal A Cruzada foi outro fator decisivo, pois a folha passou a polemizar virulentamente com a Voz do Povo, jornal situacionista, reforçando a rivalidade faccional.
A tendência de exacerbação atingiu o seu ápice no dia 7 de setembro de 1926, quando ocorreu o único episódio sangrento na história política da cidade. Uma polêmica banal, a troca do nome da praça principal proposta pelos dissidentes e obstruída na Câmara Municipal pela maioria periclista, levou as duas facções — cujos líderes se haviam ausentado para a posse do presidente do Estado — a transformarem a referida praça em um verdadeiro "campo de batalha". Os dissidentes, inconformados com a manobra periclista, saíram em comissão até a praça e, acompanhados de sua banda de música e sob o espocar de foguetes, tentaram afixar a placa com o novo nome. Os periclistas reagiram prontamente e, em meio à discussão, houve uma troca de tiros que deixou quatro pessoas mortas, inclusive o diretor da Voz do Povo.
Este episódio marcaria profundamente o quadro das relações políticas em São João Nepomuceno e redefiniria, como veremos, a própria estrutura do faccionalismo na cidade. A avaliação dos "acontecimentos de 1926" operou como uma espécie de advertência em relação ao potencial de violência do divisionismo político exacerbado, contraditório ao ideário "unionista" do padrão pessoalizante tipicamente brasileiro8, equilibrado pela ritualização dos conflitos na pequena cidade. A matéria publicada pela Voz do Povo, ao completarem dois meses do evento, é modelar:
"Azas pandas, enfunadas pela nortada rija do infortunio, a alegria completa emigrou de nosso meio: no ar, volteando, como farrapos negros, os corvos voejam, farejando a reputação alheia e nella fincando suas garras aduncas, emquanto a Discordia — essa megera terrível — faz o seu trabalho deliquescente invadindo os lares, separando os paes dos filhos, partindo affectos, desligando amigos de infância e de muitos annos, fazendo esquecida a gratidão, reflectindo-se nas relações de familia, para a construção de uma Babel nova e ainda mais perniciosa que a da lenda cristã. [...] O sangue humano não alicerça partidos. O seu derramamento injustificado quebrou a harmonia e a paz reinantes na honrada familia sanjoanense, produzindo o desagregamento de energias poderosas até então vinculadas aos sãos preceitos do Perdão, do Amor e da Caridade" (Voz do Povo, nº 927, 7/11/1926).
O que ocorre depois, além do já apontado refluxo da rivalidade clubística, é uma reacomodação das relações políticas, com o crescimento dos dissidentes na eleição municipal de 1927, principalmente entre o eleitorado urbano. Contudo, a perspicácia política do Dr. Péricles fez com que sua facção se alinhasse à Aliança Liberal, permitindo a manutenção de seu poder de mando mesmo com a Revolução de 30, em virtude da qual foi nomeado interventor municipal.
No entanto, os anos 30 testemunharam um momento de transformações importantes no panorama social do país, que se relacionavam perfeitamente com as tendências modernizadoras defendidas pela Revolução: a inserção mais efetiva da sociedade brasileira no âmbito do capitalismo internacional (cf. Abreu 1984:13) e, conseqüentemente, a definição de um padrão de relações sociais, políticas e econômicas cada vez mais pautado pela lógica do mercado, seja em sua dimensão propriamente econômica, com o impulso do processo de industrialização (cf. Abreu 1984:30), seja na base ideológica que o informa, com a reivindicação de um modelo político fundado no liberalismo e em instituições democráticas (cf. Fausto 1990:236, passim). Nos nossos termos, a emergência de um padrão ético individualista como modelo dominante9.
Isso teria provocado o que Edgar Carone (1978:6) chama de "caráter de transitoriedade" e Boris Fausto (1990:237) de "período de acomodação". Na sua primeira fase — entre 1930 e 1937 —, a República Nova articulava tendências modernizadoras com formas tradicionais de poder político — nas pequenas cidades, principalmente, as velhas oligarquias mantinham-se operantes, já que conseguiam capitalizar para si elementos do ideário liberal, principalmente processos eleitorais livres e legais, submetendo-os à preservação de estratégias tradicionais de cooptação de eleitores (cf. Camargo 1983:127). Pode-se dizer que, naquele momento, a sociedade brasileira reagia ambiguamente, formulando um modelo ético dúplice que articulava o tradicional ao moderno.
Em São João Nepomuceno, um indício importante aponta para o mesmo processo dúplice: a redefinição da estrutura faccional. Por um lado, como já vimos, opera-se a restauração da rivalidade clubística e, por outro, o padrão de disputas eleitorais entre situação e oposição continua operante, mas percebe-se uma certa acomodação com a articulação de um novo quadro de composições políticas entre as antigas facções pela necessidade de aliar o poder de voto da velha oligarquia ao discurso modernizador crescentemente hegemônico. Como resultado, inicia-se um processo de "flexibilização" do faccionalismo realizado, fundamentalmente, pela desinstrumentalização da rivalidade política, que passa a perder seu poder codificador na construção dos alinhamentos faccionais (cf. Caniello 1993:224-227).
O golpe de 1937 e o regime de exceção impõem a "suspensão" das atividades políticas na cidade, e a Segunda Guerra Mundial o arrefecimento da rivalidade clubística. Contudo, a partir da restauração democrática e do fim da guerra, a tendência de flexibilização do faccionalismo retoma seu curso.
Em primeiro lugar, reeditam-se as disputas eleitorais entre facções políticas organizadas com base nos grupos tradicionais — periclistas e dissidentes —, mas a nova ordem eleitoral determina um inusitado equilíbrio entre a antiga oligarquia alijada do poder no Estado Novo e o grupo situacionista emergente, configurando-se uma recomposição no quadro político com a aliança das antigas facções rivais, que passam a gozar de uma tranqüila hegemonia política consensual. Assim, é num fluxo de permanência na mudança que a política municipal transcorre até o final da década de 50. Se há, claramente, uma evolução em termos dos princípios institucionais na escolha eleitoral e na organização partidária, um desaparelhamento faccional e um comportamento político mais equilibrado, há, por outro lado, a manutenção dos mesmos grupos dirigentes "oligárquicos", uma estrutura de poder calcada em uma hegemonia indiscutível da situação e a sobrevivência de um estilo político calcado na "lógica da patronagem" (cf. Caniello 1990a:50-51; 1993: 239-247).
Em segundo lugar, vimos que esse foi o período do "apogeu" da rivalidade clubística na cidade, tanto pela consolidação dos clubes carnavalescos, e por seu investimento no carnaval, quanto pelo aparecimento dos clubes de futebol, que criaram um novo "campo" para o exercício da rivalidade. Contudo, conformava-se um novo tipo de faccionalismo que se definia por dois aspectos principais: a rivalidade era exercida em três arenas diferentes — na política, no carnaval e no futebol —, e a estrutura política perdia definitivamente o poder de valer-se das instituições clubísticas — ou de outras quaisquer — para uma instrumentalização direta das dissensões partidárias. Configurava-se, a partir de então, o que conceituo como faccionalismo em série (cf. Caniello 1990a:52-53; 1993:299, passim): uma ordem social que pulveriza a rivalidade característica dos sistemas totalizadores da pessoa por diversos campos da vida social sem, entretanto, estabelecer alinhamentos inclusivos que indiquem a formação de dois grandes blocos antagônicos e excludentes, classificatoriamente falando10. No caso de São João Nepomuceno, esse modelo faccional se caracteriza pela ausência de identificação direta entre o pertencimento do indivíduo às facções políticas e sua adesão às associações esportivas e carnavalescas.
Esse tipo de arranjo é essencialmente dúplice, na medida em que mantém a rivalidade como uma prática importante para a veiculação do conflito por intermédio de oposições grupais virulentas, mas a circunscreve a ambientes e momentos rituais específicos, impossibilitando o aparelhamento dualista do grupo social. O que ocorre é, ao mesmo tempo, uma agudização da rivalidade e uma acomodação de "elementos novos". Se, por um lado, as associações são definidas contrastivamente em função de uma rivalidade opositiva de matriz tradicional, a adesão a elas torna-se cada vez mais "livre", passando a depender mais da escolha do indivíduo e menos de imposições classificatórias inclusivas. Isso "apaziguou" as relações, mas manteve o código da rivalidade:
"Tinha o Trombeteiros e o Democráticos, clubes de carnaval; então, entre esses dois clubes era uma disputa ferrenha. Mas, em compensação, tinha os clubes de futebol [...] que era também uma disputa ferrenha e braba, quente mesmo, mais pra briga do que pra outra coisa. Depois, tinha a disputa política. [...] O pessoal trocava, entendeu? É por isso que eu tenho a impressão que o problema do desforro pessoal acabou. [...] A coisa amainou um pouco, a coisa não ficou tão ferrenha porque o sujeito não tava podendo ofender o outro; porque lá na reunião, lá na política, o cara fazia parte [do grupo] dele. Eu não podia brigar porque na outra associação eu ia ter que conviver com ele. Quer dizer, o pessoal era o mesmo que participava de todas as três [...], como é que eu vou fazer para ofender um cara que é do outro partido lá, como é que eu vou fazer para ofender esse cara que é do PSD se ele é meu amigo lá no Trombeteiros?" (José Maria Fam, 60 anos, empresário, ex-candidato a prefeito em duas eleições na década de 70)
O advento da década de 60, no entanto, traz importantes modificações no panorama social das "cidades pequenas" com a consolidação da "modernização" da sociedade brasileira, pois a "política de nacionalismo desenvolvimentista" (Skidmore 1982:205) de Juscelino Kubitschek, definitivamente, inseriria o país no âmbito do capitalismo mundial (cf. Singer 1984:225). Além disso, uma incontestável evolução da sociedade brasileira em termos demográficos, sociais e econômicos acabaria por criar condições bastante propícias ao desenvolvimento de um mercado interno amplo e vigoroso (cf. Sodré 1963:361-362). Essa conjunção de fatores, articulada à expansão da malha rodoviária, a um processo de urbanização crescente e a um grande incremento dos meios de comunicação de massa, consolidaria a disseminação definitiva da lógica de mercado em todo o território nacional, e esse movimento viria a impactar o modo de vida tradicional das "cidades pequenas".
Em São João Nepomuceno, esse processo se desencadearia, principalmente, pelo estabelecimento de relações mais eficientes entre a pequena cidade e a sociedade inclusiva, relações estas fomentadas por uma significativa melhora de suas estradas e das telecomunicações, particularmente com a inauguração de uma repetidora de sinais de televisão em 1962. Essas novas condições estimulariam a formulação de um discurso modernizador dominante na época, o qual veicularia uma categoria central da cosmologia histórica do faccionalismo: "o fim da rivalidade". De fato, a diversificação da vida social na cidade e o crescente desequilíbrio entre o Democráticos e o Trombeteiros, aquele em franca decadência e este em plena ascensão, viriam a mitigar a tradicional rivalidade entre os clubes. No início dos anos 80, a fundação do "country clube" do Trombeteiros, a moderna sede campestre do "clube social" que já fora "clube carnavalesco", parece ter completado esse processo, pois sua excelente estrutura passou a atrair não só as "famílias trombeteiras", mas também as "famílias democráticas", que já não podiam contar com o "clube do coração" para seus momentos de lazer. Embora aqueles chamados e autodenominados "renitentes" de ambos os clubes ainda resistissem, as novas gerações consideravam a rivalidade clubística apenas como um traço de uma velha tradição decaída nos novos tempos.
Porém, se somos instados a estabelecer uma relação de causalidade entre as mudanças na economia nacional, a hegemonização da lógica de mercado com sua pressão modificadora e a transformação de padrões de sociabilidade tradicionais colocados pelo "discurso nativo", dois fatores importantes contraditam essa correspondência: o quadro das relações políticas e a própria estrutura da rivalidade carnavalesca.
Em primeiro lugar, consideremos o campo das disputas políticas e sua dinâmica no início dos anos 60. Na década anterior, as antigas facções aliaram-se em virtude de um inusitado equilíbrio de forças entre os periclistas, reunidos no então inexpressivo Partido Republicano, e os dissidentes, detentores da administração local durante o Estado Novo, então filiados ao Partido Social Democrata (PSD), partido majoritário no estado. Entretanto, em 1960, Magalhães Pinto, da União Democrática Nacional (UDN), elege-se governador de Minas Gerais, o que faz com que o Dr. Péricles e seu PR encontrem uma linha de coligação eficiente que lhes dá uma base segura de sustentação eleitoral, garantida pelo alinhamento com a administração estadual e sua "máquina política". Assim, o velho chefe rompe a aliança conjuntural com seus adversários históricos, a disputa política retoma a tradicional polarização e o grupo do Dr. Péricles reassume o mando do poder local nas eleições municipais de 1962, posição que se estabiliza a partir do golpe de 1º de abril de 1964, já que Magalhães Pinto fora um dos seus principais articuladores.
Essa configuração se consolidou ainda mais a partir da nova legislação eleitoral imposta pelos militares após a derrota das forças situacionistas em Minas e na Guanabara nas eleições de 1965. Com a dissolução dos antigos partidos e a imposição do bipartidarismo, a relação situação vs. oposição passa a ser a única alternativa possível no jogo eleitoral. Sem embargo, o estado de exceção e seu recrudescimento praticamente impedem o exercício do oposicionismo, considerado "subversivo" na visão de um regime que se torna crescentemente discricionário. Por outro lado, a morte do Dr. Péricles, em 1966, "esvazia" a tradicional rivalidade política ao destituí-la de sua peça mais importante. Por isso, em mais um lance de pragmatismo político, as antigas facções voltam a se aliar, agrupando-se agora sob a sigla do partido oficial, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA). Durante a década de 70, exercem uma hegemonia incontestável no município, vencendo eleições definidas pela influência das forças majoritárias estaduais indicadas pela cúpula federal do regime militar. Entretanto, uma regra das eleições municipais nesse período era o lançamento à "cabeça de chapa" dos vice-prefeitos em fim de mandato, o que demonstra que o campo político ainda guardava a marca das antigas facções, conjunturalmente unidas sob a mesma sigla partidária mas organicamente separadas pela alternância no exercício do mando político:
"Bolote [prefeito (1970-1973)] tinha o compromisso com o Zé Salu, na outra eleição trabalharia para ele ser prefeito; então na outra eleição o Zé Salu foi prefeito [1973-1976] e o Antonio Cavalheiro, vice. Aí, chegaram as eleições, então o Cavalheiro entrou pra prefeito [1977-1982] e o Vagner, vice. Daí a seis anos, o Vagner elegeu-se prefeito [1982-1988]". Célio, 46 anos, empresário, prefeito da cidade.
Com a "distensão" e a volta da normalidade democrática, o jogo político na cidade vai voltando à sua habitual polarização, uma vez que os novos grandes partidos, o Partido Democrático Social (PDS) e, depois, o Partido da Frente Liberal (PFL), por um lado, e o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), por outro, passam a acomodar as forças políticas locais e as eleições readquirem o caráter de disputa tradicional. Nas eleições de 1988, dá-se a "grande virada" no município: seguindo a tendência de crescimento estadual do PMDB, que elege o governador, enfim um candidato oposicionista vence em São João Nepomuceno. Apesar da derrota do situacionismo, a vitória peemedebista na cidade parece justamente confirmar uma regra de comportamento político que tem nos "mediadores" seu elemento principal:
"Célio Filgueiras Ferraz será o primeiro prefeito eleito do PMDB no município, após 20 anos de governo dos antigos partidos, ARENA, PDS e do atual PFL. Para a cidade será uma mudança radical necessária, pois doravante a administração municipal estará afinada com o atual governador Newton Cardoso e o deputado Elmo Braz Soares que, antes, pouco podiam fazer por nossa comunidade. Cremos ter sido este o grande motivo que levou os eleitores a apoiar o candidato do PMDB" (Voz de São João, nº 2.667, 18/11/1989).
Portanto, mesmo diante das radicais mudanças políticas e econômicas verificadas entre 1960 e 1990 na sociedade brasileira, o jogo político em São João Nepomuceno manteve a sua estrutura tradicional fundamentada no padrão pessoalizante: a rivalidade entre facções políticas antagônicas, a hegemonia do situacionismo vinculado ao poder estadual e o comportamento político baseado na lógica da patronagem, apesar de suas acomodações conjunturais. Entretanto, o que se verifica é que o vigor da rivalidade faccional no campo político aprofunda sua característica ritual, pois ela vai gradativamente perdendo o poder totalizador e circunscrevendo-se ao "tempo da política":
"A política em São João é sempre uma política muito calma e só se fala em política em ano de eleição [...]. Todos vivem harmonicamente, na época de eleição é que a gente separa. [...] Quando chega a política, então há o afastamento; acabou a política, se une tudo." (Heleno, 68 anos, advogado, vice-prefeito)
No caso da rivalidade carnavalesca, como vimos, evidencia-se um processo homólogo. Com o declínio dos clubes e a ascensão das escolas de samba, reedita-se uma realidade estruturalmente idêntica à dos antigos "festejos de momo" e seu principal elemento, a disputa. Contudo, tal como na política, o exercício ritual da rivalidade é agudizado, ao restringir-se, cada vez mais, ao "tempo do carnaval":
"[A rivalidade] é diferente, porque a escola de samba acontece uma vez por ano. As pessoas em São João não vivem em função das escolas de samba o ano todo, é quando tá chegando o carnaval. No clube, as críticas, as coisas, apesar de só serem feitas no carnaval, a rivalidade existia o ano inteiro. [...] Escola de samba tem só no carnaval, mas é muito acirrado" (Plínio, 32 anos, industriário, presidente do Trombeteiros).
Portanto, no início dos anos 90, configura-se a última fase do processo de desinstrumentalização da rivalidade tradicional, que conceituei como faccionalismo pontual (cf. Caniello 1993:319, passim): a rivalidade perde definitivamente aquele poder classificatório que condiciona o trânsito do indivíduo nas diversas áreas da vida social, tornando-se ainda mais circunscrita a momentos especiais e demarcados que veiculam enfrentamentos grupais conflituosos. Por outro lado, ela permanece sendo uma categoria definidora da "reciprocidade hostil", que contrabalança ritualmente o "unionismo" globalizador da vida cotidiana e sua lógica mais profunda, a ética pessoalizante. Assim, no faccionalismo pontual preserva-se a estrutura definidora da rivalidade, exacerbando seu caráter ritual, mas o indivíduo é libertado da classificação totalizadora proveniente do pertencimento à facção, cobrindo-se de uma ideologia que pontua a escolha individual como elemento crítico de suas opções partidárias ou carnavalescas.
Márcio Caniello é professor do Departamento de Sociologia e Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), onde trabalha desde 1986. Mestre em Antropologia Social pelo PPGAS/MN/UFRJ (1993) e doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (2001), atualmente é coordenador do PPGS/UFCG e membro da diretoria da ANPOCS e o presente trabalho corresponde à tese de mestrado do professor.
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